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Iguais nas diferenças

Revista Desafios
Edição novembro de 2004


REPORTAGENS
Iguais nas diferenças

Relatório anual do Pnud apresenta o multiculturalismo como fator de prevenção de conflitos sociais. A liberdade cultural também é fundamental para assegurar o desenvolvimento humano

Maysa Provedello

Imagine um mundo onde todas as culturas fossem livres, respeitadas e valorizadas. E que essas culturas não se limitassem apenas a formas artísticas de expressão, mas a um contexto mais abrangente, composto por crenças, costumes e ideologias.

Alunos da Escola Estadual Santa Helena abastecida por energia solar, no interior da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso


A edição de 2004 do Relatório do Desenvolvimento Humano, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), busca os caminhos para se alcançar esse cenário, bastante ideal na teoria mas difícil de ser atingido na prática - o que é facilmente comprovável com a observação das manchetes de jornais de todo o mundo, espelhos das tensões sociais geradas pela falta de aceitação das peculiaridades culturais de diferentes grupos.

A diversidade cultural é uma característica positiva e a sua negação é um dos mais poderosos combustíveis da geração de conflitos sociais, aponta José Carlos Libânio, coordenador de Avaliação de Políticas e Desenvolvimento Local do Pnud no Brasil."Isso acontece não apenas entre países,mas também internamente, por exemplo, quando se busca uma identidade nacional em detrimento das múltiplas possibilidades locais de expressão", explica Jacques Dádesky, economista e antropólogo, professor da Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro. Pelas estimativas das Nações Unidas, existem atualmente 900 milhões de indivíduos que sofrem algum tipo de exclusão cultural, ou também a chamada exclusão por modo de vida.

A cada sete pessoas, uma enfrenta problemas com pelo menos uma de suas várias identidades culturais. E vale lembrar que cada ser humano pode pertencer a diversas variantes nesse campo, ou seja, professar uma religião, ser homem ou mulher, torcer por um time, gostar de um tipo de música, apoiar um partido político, ser heterossexual ou homossexual.Partindo-se da hipótese de que os excluídos em algum momento se cansam e partem para reclamar seus direitos, podemos entender o barril de pólvora em que se transformou o planeta.

Por essas e outras o Pnud dedica seu relatório anual ao assunto. Desenvolvimento Humano não é apenas ter acesso a bens de consumo, educação e saúde. Na definição de Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia e um dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), esse é um paradigma que deve ser visto "como um processo de expansão das liberdades reais desfrutadas pelas pessoas".

"Existem vários tipos de exclusão, não apenas a econômica; o racismo, a falta de igualdade entre mulheres e homens, as questões religiosas, o esquecimento dos valores das minorias, podem ser até mais excludentes do que a falta de recursos financeiros" avalia Maria Aparecida Silva Bento, diretora da organização não-governamental Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdade (CEERT) de São Paulo.

A principal variável da equação proposta pelo PNUD é o multiculturalismo. Bastante debatido nos últimos anos, ele pode ser entendido, em linhas gerais, como a coexistência de culturas em pé de igualdade."É mais do que um mero pluralismo cultural é uma convivência em condições de isonomia", esclarece Dádesky. "Se as demandas relativas às liberdades de identidade não forem administradas ou se acabarem negligenciadas,podem se tornar uma fonte de instabilidade", alerta o relatório. É como se a composição social do mundo atual estivesse à beira de uma ruptura, alimentada pelas constantes migrações e seus efeitos sobre as populações,pela hegemonia ocidental e dos países desenvolvidos sobre as outras regiões e, ainda, pela falta de políticas voltadas para acomodar tais situações. Além do multiculturalismo, a proposta do documento tem como base o fortalecimento da democracia e os direitos humanos.

O desafio de encontrar as melhores formas para garantir uma sociedade multiétnica com elevado nível de igualdade tem dimensões gigantescas. Mas, de acordo com o documento da ONU, os países precisam encontrar caminhos para formar uma identidade nacional que acomode e atenda aos anseios de diver- sidade. É o tipo de idéia que fica bem no papel, mas é difícil de implementar. Isso devido a uma espécie de crença institucionalizada, um mito, de que sociedades com identidades culturais distintas fortalecidas acabam tendo seus Estados enfraquecidos. Para contornar o problema, estabelece-se um modelo de administração nacionalista que suplanta hábitos, religiões e costumes de minorias.

O relatório recomenda algumas providências para que se estabeleça um ambiente de convivência pacífica.As cinco principais são as seguintes: incentivo à participação política,mecanismos de acesso às oportunidades socioeconômicas,cuidados com os idiomas e dialetos, chances de utilização dos instrumentos de justiça e liberdade religiosa. "É preciso ainda, no caso das desvantagens latentes, promover políticas compensatórias que acabem levando, com o tempo, um grupo de excluídos por razões culturais às mesmas condições do restante da população", explica Diva Moreira, analista de Programas do Pnud no Brasil."Tais ações acabam sendo de fundamental importância tanto para a qualidade de vida como para garantir as condições de governabilidade do Estado", afirma Libânio."Quando se iniciam conflitos decorrentes de falta de liberdade toda a população acaba pagando, como ocorre no caso de uma guerra interna ou externa", diz. Quando o cenário se configura dessa forma, é hora de governos lançarem mão das ações afirmativas, que no Brasil são mais conhecidas pela reserva de cotas para minorias, embora possam existir em outros formatos.

O Brasil já avançou muito em alguns sentidos, como na Constituição e em algumas leis específicas de garantia de direitos especiais de minorias como os indígenas,as mulheres e as pessoas com deficiências. A maior falha está localizada na questão racial. "O racismo praticado no Brasil é um dos mais perigosos por não ser explícito e, da forma como estamos hoje, pode comprometer a consolidação democrática no Brasil", declara Nathalie Beghin, pesquisadora do Ipea em Brasília. Tal afirmação baseia-se nos números assustadores quanto às condições de vida dos afrodescendentes no País, que são claramente discriminados. "Não estamos falando somente do racismo da sociedade, mas do pior deles, aquele praticado pela ausência de interesse do Estado para diminuir tal situação, conhecido como discriminação institucional", pontua Beghin.

A população brasileira de afro-descendentes era de 76,2 milhões segundo o Censo de 2000, o que correspondia a 45% do total e fazia do país a segunda maior nação negra do mundo, atrás apenas da Nigéria.O número de negros vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou entre 1992 e 2001, ao contrário do que ocorre com a população branca No que se refere à juventude (entre 15 e 24 anos), 73% do total de 1,2 milhão de analfabetos são negros ou pardos, segundo cálculos feitos pelo Ipea a partir da Pnad.

O problema é ainda mais grave. De acordo com o Ministério da Saúde, enquanto as taxas de assassinatos entre adolescentes brancos é de 61,7%, entre adolescentes negros chega a 67,3%. E um estudo da Fundação Sistema Educacional de Análise de Dados (Seade), de São Paulo, sobre o universo de condenados por roubos e furtos naquele estado,mostra que a penalização de homens e mulheres brancos é significativamente menor do que a de mulheres e homens afro-brasileiros. É com estatísticas dessa natureza que o movimento negro busca desconstruir o mito da democracia racial brasileira.
Só recentemente esse problema vem sendo observado com maior cuidado. No final da década de 1990 foram tomadas as primeiras iniciativas para permear as políticas públicas com medidas de combate ao preconceito e à discriminação, conjugadas a iniciativas compensatórias e que buscam promover a redução das desigualdades."O Estado vem assumindo pouco a pouco, com mais vigor, a função de promover a igualdade", explica Beghin.

Na área da educação, foi aprovada em janeiro de 2003 uma lei que determina o ensino da história da África e de cultura africana no currículo escolar. O Ministério da Educação está organizando fóruns estaduais com o objetivo de discutir e encontrar caminhos para implantar a norma.Também estão sendo realizados debates acerca do material didático a ser utilizado nessas disciplinas e da forma de capacitação de professores.Algumas universidades federais, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de Brasília (UNB) iniciaram ações afirmativas, com reserva de vagas para estudantes negros. Há mais novidades nessa área. Em março de 2003 foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), ligada à Presidência da República, com a intenção de fazer com que todas as políticas públicas federais englobem preocupações com o combate ao racismo."É um trabalho difícil, estamos ainda no começo", diz a ministra Matilda Ribeiro, responsável pela pasta.As prioridades da secretaria são a promoção de ações afirmativas, a melhoria das condições de vida das comunidades quilombolas e a inclusão das especificidades da saúde da população negra no Plano Nacional de Saúde.

"O problema é que estamos ficando muito tempo nas discussões, precisamos partir logo para a prática",critica Bento. Para Edson Lopes Cardoso, um dos principais líderes do movimento negro no País e mestre em Comunicação,quaisquer tentativas de políticas deixam de ser válidas enquanto não for aprovado no Congresso Nacional o Estatuto do Negro, pronto para ser votado em plenário desde o final de 2002 e atualmente em fase de reavaliação a pedido do governo.

Os pontos mais polêmicos do projeto estão ligados à criação de um fundo com recursos federais para a implantação de medidas de ação afirmativa e à definição do público beneficiado - se seria composto apenas por negros ou se envolveria outras minorias." Já temos legislações para as pessoas com deficiência, para o idoso, para o meio ambiente e a criança,mas quando se trata da situação dos afro-descendentes o assunto deixa de ser prioridade", resume Cardoso.

"Combater a discriminação é um ato de alta dificuldade porque o fato de ela existir não significa necessariamente que aquele que discrimina tenha algo contra o discriminado. Ele pode apenas temer perder sua posição na sociedade", avalia Bento. "Não basta que se atestem direitos iguais a todos os cidadãos. É preciso tratar os menos favorecidos de forma especial, diferente", resume Libânio.

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